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Resumo: A Lei 12.424, de 16 de junho de 2011 acrescenta o artigo 1240-A e parágrafo 1º ao Código Civil Brasileiro. Discute-se a eficácia do novo regramento, considerando-se que, somente dois anos após a decretação do divórcio ou dissolução da união estável, havida após o início da vigência, é que poderia aplicá-lo. Neste trabalho, veremos que tal eficácia já existe.
I – ORIGENS DA FORMA USUCAPIENDA
Quando a inteligência romana construiu a usucapião, como forma de aquisição de domínio, encontrou uma solução para consolidar uma expectativa vazia de domínio, qual fosse a simples posse. Como a aplicação do direito romano partia do fato – DA MIHI FACTUM DABO TIBI JUS – os operadores do direito encontraram, no lapso de tempo, outro fato precioso para iniciar-se o tratamento legal para tornar em dominus o possuidor por tempo prolongado. A esse acréscimo fático, colaram-se, por decorrência do conceito: JUS BONUS CENSUS EST que a posse deveria ser, além de prolongada, legítima, ou seja, escoimada de violência, fraude ou precariedade; pacífica, isto é, sem ter sido objeto de reivindicação ou recuperação por quem se dissesse proprietário; e, finalmente, com que intenção ou desempenho o possuidor exercitava a posse, ou seja, se havia animus dominus, qual fosse, o zelo de proprietário.
Como pano de fundo dessa construção, animava o estado, ou a sociedade romana, a intenção de coibir agressão ao estado de paz social pela reivindicação belicosa de propriedade ocupada, sem uma devida avaliação do estado de fato, representado por uma posse contestada, sob a luz daqueles fatos subsidiários. Por outro lado, estava assegurando a destinação social da propriedade, desvirtuada pelos fatos que originaram a posse reivindicanda, entre eles, o abandono, pela falência do animus dominus.
Aprendemos a lidar com a usucapião ordinária e a extraordinária, mas, de tal maneira foi tratado o lapso temporal, que propiciava minimizar-se a angústia do possuidor por 19 anos, mediante indenização por benfeitorias, geralmente precárias (mesmo as moradias) porque sempre pesava sobre o possuidor a “espada de Dâmocles” da reivindicação. Exceção das colheitas de manutenção, no caso rural, até mesmo as cercas pendiam de manifestação de intenção de dono, pela inquietação e insegurança do longo lapso de tempo a beneficiar uma reivindicação.
Felizmente, a mobilidade do Direito no tempo abriu na árvore jurídica da usucapião dois importantes ramos: a usucapião rural e a usucapião urbana, com o mesmo escopo: preservar o princípio da destinação social da propriedade, com direção projetada para a segurança de moradia e alimentação familiar no campo, ou somente de moradia, na urbs. Ninguém pode excusar o abandono de ter sido o fato gerador dessa posse, contemplada por uma sentença de usucapião.
De repente a sociedade brasileira se deu conta de que algo tranquilizador se fazia necessário, para contemplar situação de angústia familiar ou individual criada a partir do abandono do lar conjugal por um parceiro, no âmbito da propriedade condominial nascida do casamento ou da união estável, e, mais recente, da união e matrimônio homoafetivo.
II – NASCEU A USUCAPIÃO FAMILIAR
Pegando carona na lei 12.424, de 16 de junho de 2011, que cogita de regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas, o direito de família se viu alcançado por uma modalidade de usucapião de imóvel familiar, embora como instrumento de regularização fundiária urbana.
A maneira indireta de reformar o Código Civil, teria como justificativa aceitável, o socorro à família, em razão do abandono do lar, na medida em que esse “abandono” além de significar desprezo, marca como renúncia – nas hipóteses que a lei contempla – ao status de comunheiro da propriedade familiar, e perturba a ordem social com a expectativa de desabrigo – quando ocorrer a busca da meação abandonada (e até então garantida pela comunicabilidade patrimonial) – o que se consuma quando se deflagra a reivindicação pela partilha do bem familiar.
A situação se agrava exatamente quando o bem é da metragem abrigada na lei, pois com a meação dele a aquisição de outro, na prática é quase impossível ou constrange uma família mais numerosa a conviver em angustos espaços.
Por sua vez, o abandono da família e, consequentemente da meação do bem que esta abriga – ou, mesmo no caso de que só fique o comunheiro restante-, transfere os ônus da meação abandonada, de conservação, manutenção e provimento dos encargos tributários e de defesa, em despesas, agora, exclusivas do comunheiro restante, o que o compele a possuir a meação com o mais verdadeiro animus dominus, para livrar-se da perda total do bem por falta daqueles acudimentos.
A injustiça da eternização da garantia da comunhão, sob o prisma da função social da propriedade – como assegura a Constituição Federal – se apresentava como um quisto de perturbação, em boa hora cirurgiado por esta lei, criadora de um novo nicho de usucapião, dentro da estrutura usucapienda do Código Civil, sempre protetora da posse legítima, por lapso de tempo – este, também, sempre um medidor do verdadeiro apego ou senhorio do abandonante pelo bem – ao lado de outros requisitos comuns à árvore da usucapião.
Com o renovado espírito legislativo, o abandono do lar perde sua equivocada configuração de “prêmio” patrimonial para quem fica, eis que não se ganha um lar, mas, na realidade, uma situação de angústia prolongada, até que a solução da partilha ou, agora, a usucapião ponha fim.
Não seria bom prosseguir sem algumas considerações sobre
III - O QUE É ABANDONO DO LAR E QUAIS AS SUAS CONSEQUÊNCIAS ATÉ O ADVENTO DA USUCAPIÃO FAMILIAR URBANA
Em hermenêutica, é sempre a força expressiva do vocábulo ou semantema, que predomina. Recorrer ao vocabulário do idioma, nos leva, então, ao seguinte modelo de entendimento[1]: “ABANDONO – s.m. ação ou efeito de abandonar II (Jur. Renúncia criminosa; desamparo total)”.
Por sua vez, no mesmo compêndio[2], encontrar-se-á: “ABANDONAR – v.tr. renunciar a; desistir de; deixar de todo, desprezar”.
O outro passo da interpretação é a contextualização do vocábulo como catalisador da situação alvo que se quer prover, no caso, uma família ou um parceiro de matrimônio ou união simples, em estado de abandono, de desamparo, pelo simples fato de que antes eram dois “para o que desse e viesse” e, agora, resta, apenas, um. A situação que se quer prover é o desamparo em que passam a ficar os abandonatários, seja o parceiro ou a família restante, com o rompimento, ex abrupto e sem formalidades da união matrimoniada ou de fato.
Esse desamparo, cada dia mais frequente, na proporção da pouca duração dos casamentos, na medida em que angustiava pela solidão e frustrava pela derrota de um projeto familiar e patrimonial, tem sido um fator ponderável na avaliação da inquietação social, como reflexo do destempero comportamental de filhos e parceiros abandonados. Dessa forma, o abandono do lar não se pode comparar ao abandono de um bem material sem vida como uma simples casa, fazenda ou roupa usada. Abandonam-se sonhos, projetos, laços sanguíneos e parentais afins, convivência e comunhão, presença que traçava rumos, distraia, amava, conciliava, punia, conduzia, equilibrava, ou seja, rompeu-se um conceito social de peso em toneladas: FAMÍLIA.
Mais do que qualquer outra instituição, a família precisa de moradia, abrigo, local de aconchego, de amparo, de lágrimas e sorrisos, de mesa para celebrações e leitos para sadios e enfermos, enfim, de intensidade de vida doméstica que configure o lar, como sede de seus anseios e empreendedor da estabilidade social. O abandono do lar rompe o áureo véu da família, transferindo para a sociedade o desequilíbrio das emoções e desejos, então contidos pela segurança que o lar inspirava.
No trilho do resguardo do papel social da propriedade entre os mais (e talvez o mais) eloquentes promotores da paz social, a legislação já estabelecera duas formas de usucapião extraordinário ou especial, apontando para situações de amparo residencial e de sustento familiar de famílias campesinas, como de famílias urbanas, com as mesmas normas reguladoras da posse, diferença apenas no lapso de tempo e dimensão de área. Não é de agora, portanto, o cuidado legislativo em criar mecanismos, ancorados na premissa constitucional de utilização social da propriedade, de proteção à moradia familiar e de preservar um meio de sustento da família.
Usucapião familiar, portanto, não é privilégio da Lei 12.424, de 16 de junho de 2011, nem há de ser esse o seu nome, sendo-lhe mais propício a sua concepção como “usucapião por abandono do lar” uma vez que o seu papel é de reformar, para introduzir 1240-A e parágrafo 1º no Código Civil Brasileiro, alinhando-se aos artigos 183 e 191 da Constituição Federal. Por mero processo de racionalização, o Congresso Nacional e o Poder Executivo anuiram num processo de reforma urgente do Diploma Cível, abrangendo-a no procedimento de regularização fundiária, cujo escopo é a tranquilidade social via da ocupação racional do solo urbano, viabilizando a propriedade ao abandonatário da meação condominial que nascera pelo casamento ou união estável.
IV – O PROGRAMA LEGAL PROTETIVO DO ESTADO À PROPRIEDADE FAMILIAR
1) Na constituição Federal
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º - Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
(...)
Art. 9º A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 1.240-A:
"Art. 1.240-A Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
2) Na legislação infraconstitucional
a) Lei 12.424, de 16 de junho de 2011:
LEI ORDINÁRIA Nº 12424, DE 16 DE JUNHO DE 2011. Altera a Lei 11.977, de 7 de Julho de 2009, que Dispõe Sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida - Pmcmv e a Regularização Fundiária de Assentamentos Localizados em Áreas Urbanas, as Leis 10.188, de 12 de Fevereiro de 2001, 6.015, de 31 de Dezembro de 1973, 6.766, de 19 de Dezembro de 1979, 4.591, de 16 de Dezembro de 1964, 8.212, de 24 de Julho de 1991, e 10.406, de 10 de Janeiro de 2002 - Código Civil; Revoga Dispositivos da Medida Provisória 2.197-43, de 24 de Agosto de 2001; e da Outras Providencias.
V – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Merece encômios ou somente críticas a nova proposição legal?
Os elogios, com a moderação, sempre recomendável, não devem ser negados, porque uma reforma de um codex não exige mais formalidades do que as que foram cumpridas para a elaboração dessa Lei, exceto pelo que, de sua forma embutida, se possa fazer restrição pela falta de discussão mais ampla e pertinente a tópicos como “abandono do lar” e “ex cônjuge” e “ex companheiro”.
Por vero, uma decantação mais fina talvez encontrasse um meio de substituir os “EX” por uma expressão que os abrangesse. Todavia, não se poderia dizer que a falta de afeição à eloquência jurídica do parlamento, tenha deixado o artigo introduzido órfão de significado compatível com o espírito da lei. Ora, o Código foi alterado para se ver acrescido de mais uma modalidade de usucapião protetivo da habitação familiar, ou seja, o abandonatário tem que haver sido CÔNJUGE ou COMPANHEIRO do abandonante, a fim de definir a sua posse (do abandonatário) como de legítima e conhecida origem – um casamento ou união estável -, salvo prova em contrário.
Assim as expressões “ex cônjuge” e “ex-companheiro” destinam o aplicador da lei a constatar na inicial dessa usucapião, o fato de ter havido um casamento ou uma união estável e, hoje, um casamento ou união estável homoafetiva.
Ninguém pode por em dúvida que “EX” é o que foi, o que abandonou, o que renunciou, o que deixou algo ao desamparo de seus cuidados e responsabilidades. É um fato novo – não contemplado na gênese das espécies usucapientes em vigor, gerando uma posse conhecida da sociedade e legítima em seu nascedouro.
Daí ser de mero espírito de contusão à nova modalidade de usucapião, o querer que os abandonatários se quedem esperando a solução judicial de uma demanda por divórcio ou sentença de separação judicial para ajuizarem a usucapião se tem a seu favor este e todos os demais requisitos da lei: exercício, por dois anos, ininterruptamente, e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m², cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, não sendo proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Avaliação pertinente diria aquela que observasse que as situações que a lei intentou proteger tornaram-se fora dela pela não retroatividade da lei para beneficiar os abandonatários. De fato, se para tal modalidade usucapiente o prazo de dois anos somente é contado a partir de 21 DE JUNHO DE 2011 muitos terão a prescrição aquisitiva interrompida pela propositura da partilha, via divórcio direto, conversão ou separação judicial.
No entanto, a solução para casos que está na figura constitucional da usucapião familiar. Se o abandonatário perfaz cinco (05) anos de posse decorrentes de abandono do lar em 19 ou 21 de junho de 2011 (a lei foi publicada e republicada) ajuizará a usucapião, com o fundamento constitucional do lapso temporal inscrito no artigo 183 da Constituição Federal, combinado com a lei 12.424, de 16 de junho de 2011, como puro e simples acolhimento do abandono do lar com causa legítima da posse do postulante. Não há como negar que o lapso temporal de (05) cinco anos – e demais requisitos- do artigo 183 da Constituição Federal tem muito mais força coercitiva e intencional do viso estatal de paz social para propiciar a outorga de sentença de domínio por usucapião da meação em litígio.
Por sua vez, se no mesmo quadro hipotético estiver quem venha a ser acionado por partilha, via de ação judicial, poderá opor a usucapião familiar constitucional, combinada, como defesa, na contestação, como prática consumada.
1. São requisitos para essa nova espécie de usucapião:
a. O imóvel deve ser urbano e de área não superior a 250m²;
b. Tal bem deve ser da propriedade de duas pessoas que sejam casadas ou vivam em união estável (incluindo-se as relações homoafetivas);
c. O imóvel deve ser utilizado para a moradia do casal ou da família;
d. Uma das pessoas deve ter "abandonado o lar";
e. A posse do cônjuge ou companheiro que permanece no imóvel deve ser mansa e pacífica, ou seja, não pode haver oposição do cônjuge infrator;
f. A posse deve ser exercida, pelo cônjuge inocente, por pelo menos dois anos, a partir do abandono do lar;
g. O cônjuge abandonado não pode ser proprietário de outro imóvel, urbano ou rural nem pode ter sido beneficiado, em outra circunstância, com pedido sob o mesmo fundamento, mesmo que no âmbito de outra relação afetiva (art. 1.240-A, parágrafo primeiro, do Código Civil).
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