Relatório de uma visita acadêmica
ao Educandário Joana Richa - em Curitiba/2007
FACULDADES INTEGRADAS CURITIBA
FACULDADE DE DIREITO DE CURITIBA
DIREITO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE - PROFESSORA MARTA TONIN
ALUNA: TÂNIA MANDARINO - 10º "A" -
DIURNO
RELATÓRIO DE VISITA AO
EDUCANDÁRIO JOANA RICHA
Então, lhe trouxeram algumas crianças para
que as tocasse, mas os discípulos os repreendiam. Jesus, porém, vendo isto,
indignou-se e disse-lhes: Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraceis,
porque dos tais é o reino de Deus. Em verdade vos digo: Quem não receber o
reino de Deus como uma criança de maneira nenhuma entrará nele. Então,
tomando-as nos braços e impondo-lhes as mãos, as abençoava. (Mc 10.13-16)
1. INTRODUÇÃO
A questão da criança e do adolescente,
recém regulamentada pelo ECA significa, indubitavelmente um avanço no que toca
à proteção integral dessa etapa tão particular da vida do ser humano.
Enganam-se os que, apregoando a
redução da maioridade penal, desconhecem a questão da privação de liberdade
imposta a adolescentes infratores.
Dentro das medidas socioeducativas
elencadas pelo ECA em seu artigo 112, temos a internação (inciso VI), que nada
mais é do que a medida máxima imposta ao adolescente que infringiu a lei.
Embora tal medida não tenha
caráter punitivo, pois trata da tentativa do Estado de oferecer maior proteção
e educação de modo a ressocializar o adolescente, ver alguém privado se sua
liberdade de ir e vir é algo que, sem dúvida, nos emociona e constrange.
A despeito das impecáveis
instalações do Educandário Joana Richa, da notável competência de seus
diretores e educadores e dos excelentes programas a que têm acesso as internas
ali em recuperação, não é possível deixar de observar que a frieza das celas e
a rigidez das grades, nos traz um sentimento intraduzível de impotência e
tristeza ante o fato de se fazer necessário privar da liberdade seres tão
recentemente iniciados em suas trajetórias de vida.
Fica presa na garganta uma
sensação de responsabilidade, de omissão, de “onde foi que nós erramos?” e, ao
mesmo tempo uma ânsia por fazer urgentemente algo que possa ter efetividade na
questão da criança e do adolescente que, mais tarde, certamente desembocará nas
questões da violência, da segurança pública, da miséria, do tráfico, enfim, em
questões muito particulares que farão toda a diferença entre viver ou morrer,
sem distinção de classe socioeconômica, uma vez que, num crescente de omissões
e erros todos, mais cedo ou mais tarde, seremos acometidos pela situação em que
se encontram as crianças e adolescentes hoje em nosso país.
Como acadêmicos de Direito, fica
a certeza da obrigação de avaliarmos essa visita não apenas como
universitários, mas, e sem a menor pretensão de arrogância, como a única
categoria acadêmica que se forma para o exercício de um Poder.
Que Deus nos ajude em nossa
trajetória de operadores do Direito a compreender a grandeza da correlação
existente entre poder e responsabilidade, sobretudo no que toca à fiscalização
da fiel execução do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como na
participação ativa que o tema merece, a fim de que a fantástica teoria possa se
fortalecer a ponto de sair do papel e caminhar por esses imensos Brasis,
alegre, saltitante e lúdica, como deve ser a infância e questionadora e inquietante,
como a adolescência.
2. RELATÓRIO
O Educandário já, de chegada, nos
chama a atenção por sua grandiosidade e imponência.
Não se trata de luxo, mas da
visualização de um espaço que se apresenta absolutamente harmonioso, por seu
acabamento impecável, desde a arquitetura de herança canônica, até as
instalações limpas, claras, bem pintadas e acolhedoras.
Em prédio apartado encontram-se a
diretoria, as salas pedagógicas e uma sala da Assistente Social e Psicóloga.
Um piano chama a atenção neste
anexo, onde as internas recebem a visita de suas famílias, bem como uma porta
com a placa “Salão de Beleza”. Quadros confeccionados pelas internas compõem a
decoração das paredes.
Nos recebeu a Diretora da
unidade, Mariciane, que nos apresentou à Psicóloga, Cleuza, que passou a nos
informar o que segue:
Trata-se da única unidade para
internação feminina de adolescentes em todo o estado do Paraná.
A capacidade da unidade é para 30
internas, mas chama a tenção o baixo número de 24 adolescentes, que é a média
constante da unidade.
Não importa o local da infração
dentro do estado do Paraná, elas virão para o Educandário Joana Richa, sendo que
as cidades de origem da maioria das internas são Foz do Iguaçu e Cascavel, dada
a região fronteiriça, com maior incidência de tráfico de drogas.
A medida de internação tem a
duração de três anos, mas a média de permanência na unidade é de um ano. Tal medida
só cabe para infrações bem graves, sendo que as infrações, via de regra, são de
roubo, homicídio e tráfico de drogas.
Dificilmente haverá internas que
cometeram infrações leves.
As internas têm acesso a
escolaridade (ensino fundamental e médio), qualificação profissional,
atendimento médico, psicológico, social e pedagógico.
Trabalha-se também a família,
para qual a interna retornará mais tarde.
A faixa etária predominante
situa-se entre os 14 e 19 anos, sendo que se a medida é aplicada pouco antes
dos 18, pode-se permanecer até os 21 anos na unidade.
Chama a atenção o fato de que,
nos últimos anos, têm chegado meninas muito jovens à unidade, sendo que no
último ano houve um aumento significativo na entrada de meninas de 13 e 14
anos.
Pode-se afirmar que a totalidade
das internas advém de famílias muito pobres, que por sua condição
socioeconômica, descuidaram-se da educação das filhas.
A visita se deu nas duas alas da
unidade, a ala pedagógica e a ala interna, onde se situam os alojamentos.
2.1. ALA PEDAGÓGICA
Iniciamos a visita pela sala de
artes, de bela arquitetura, com um pé direito bem alto, como em toda a unidade,
e janelas muito bonitas, originais da época em que ali era um convento.
A sala comportava 10 teares,
cedidos pelo Provopar, que também envia um artesão para ensinar a arte às
meninas. Como o espaço da sala de artes não é muito grande, os teares
geralmente ficam instalados na recepção e estavam ali, excepcionalmente,
durante nossa visita.
Uma biblioteca composta por 16
estantes pequenas é tudo de livros que a unidade possui a disposição das
meninas.
Um pequeno aparelho de som e um
aparelho de dvd, além de um quadro negro, compõem os acessórios da sala de
artes.
As meninas confeccionam peças no
tear, inicialmente mantas e, depois, peças mais complexas como bolsas; elas
confeccionam uma peça para elas e outra para a unidade.
Recentemente o Provopar sorteou
uma máquina de tear, que a contemplada pode levar para casa em troca de
oferecer ao Provopar uma produção específica.
Nas palavras da Psicóloga Cleuza,
a unidade se utiliza do “sistema de copistas”, no qual a televisão é proibida
no primeiro mês de internação, depois passa a dia sim, dia não e, no segundo
mês, por bom comportamento, pode ser assistida todos os dias.
No terceiro mês a interna pode
fazer jus ao quarto coletivo e a conquista máxima que se obtém é a atividade
externa uma vez por mês, que pode ser uma ida ao centro da cidade ou, até, um
passeio à praia.
Para essa ala, a Pedagógica, o
delito pouco importa, pois, nas palavras da Psicóloga Cleuza, “quem julga é o
juiz” e a medida socioeducativa não é punitiva, mas visa ressocializar através
de conquistas, avanços e novos aprendizados.
O objetivo é tentar mostrar novas
possibilidades, para que as meninas vislumbrem, também, outras oportunidades.
Quando são liberadas da unidade,
numa espécie de progressão de regime, as meninas saem, geralmente, com a medida
de liberdade assistida, ou, ainda, com a medida de semiliberdade.
A Psicóloga Cleuza nos relata que
a medida socioeducativa de semiliberdade, quando é progressiva em relação ao
internamento, se torna bastante complicada, pois, como a unidade atende todo o
estado, as meninas do interior não podem se beneficiar, uma vez que tal medida
compreende a frequência à escola pela manhã, um curso profissionalizante ou
inserção no mercado de trabalho á tarde, devendo haver o retorno a unidade no
período noturno.
O índice de reincidência é
calculado em 14%, haja vista que em 24 internas, duas retornaram.
Das 18 unidades do IASP no
Paraná, apenas uma é feminina. O abrigo é de competência do Município.
A Ala Pedagógica comporta, ainda,
as salas de aula destinadas ao ensino fundamental e médio, oficina de costura
com seis máquinas onde as meninas aprendem desde o básico até a confecção de
lingeries, sala de informática onde têm aulas duas vezes na semana, o piano,
onde um professor voluntário da Escola de Música e Belas Artes lhes ensina
musicalização, consultório odontológico e consultório médico, além da sala para
atendimento psicoterapêutico.
No salão de beleza, bem equipado,
e muito bem pintado em branco e lilás, as meninas têm acesso à formação
profissionalizante oferecida pelo SENAC e aprendem a fazer depilação, manicure,
etc.
O Estado paga passagens para que
os pais mais carentes possam vir do interior visitar suas filhas, mas não
chegou a ser questionado com qual frequência.
2.2. ALA INTERNA
Composta por alojamentos onde, no
lugar de portas, temos grades.
Embora as celas se pareçam em
tudo e por tudo com quartos de adolescentes, não as chamarei de quartos e sim
de celas, dada a questão das grades de isolamento.
Há um berçário para a permanência
de recém-nascidos junto às mães, quando se fizer necessário, contendo dois berços
ao lado de camas para as mães, com colchas de fuxico confeccionadas pelas
próprias internas, aliás, um trabalho muito bonito.
Neste ambiente nota-se a presença
de decoração infantil, com barrados nas paredes, berços brancos, tudo muito
limpo e adequado para a permanência de um bebê, embora no momento não houvesse
nenhum na unidade.
A Ala Interna é composta por um
corredor onde se dá a progressão de fase chamada de “fundo” e “mais para
frente”.
A interna, quando chega na
unidade, fica dois dias em recepção, passando por avaliação médica, enfermagem,
avaliação psicológica, etc. e, após, passa para a fase 1, onde vai para a cela
e, depois, para a cela coletiva, que é sua última conquista em termos de
instalações e alojamento.
Não fossem as grades, as celas
seriam quartos até bastante individualizados. A primeira atividade do dia,
quando acordam cerca de 7 horas da manhã, é arrumar as camas.
Todas se encontravam arrumadas,
as celas eram bem personalizadas, tinham fotos e objetos de decoração pessoal
das internas num ambiente de muita positividade, quase todas com um livro
aberto sobre um movelzinho que funciona como um bidê, ou até mesmo sobre o
chão, em cima de toalhinhas.
Todas as camas com colchas
estendidas, quase todas em fuxico, uma toalhinha de rosto posta decorativamente
sobre a cama, a lembrar um babado, cartazes em forma de coração com belos
dizeres, falando de amor, esperança, carinho decorando o ambiente ao lado de
fotografias de seus familiares ou figuras recortadas de revistas.
Fomos informados de que, durante
a internação, as meninas podem, em caso de mau comportamento, receber
advertências; após três advertências, a interna é levada para a contenção,
quando deve permanecer dentro da cela com um kit contenção, com material para
que ela possa ler e escrever, e ali permanece durante mais ou menos dois dias.
3. CONCLUSÃO
O Educandário Joana Richa parece
atender a todas as disposições do ECA em seu Art. 94, como segue:
As entidades que desenvolvem programas de
internação têm as seguintes obrigações, entre outras:
I - observar os direitos e garantias de que
são titulares os adolescentes;
II - não restringir nenhum direito que não
tenha sido objeto de restrição na decisão de internação;
III - oferecer atendimento personalizado, em
pequenas unidades e grupos reduzidos;
IV - preservar a identidade e oferecer
ambiente de respeito e dignidade ao adolescente;
V - diligenciar no sentido do
restabelecimento e da preservação dos vínculos familiares;
VI - comunicar à autoridade judiciária,
periodicamente, os casos em que se mostre inviável ou impossível o reatamento
dos vínculos familiares;
VII - oferecer instalações físicas em
condições adequadas de habitabilidade, higiene, salubridade e segurança e os
objetos necessários à higiene pessoal;
VIII - oferecer vestuário e alimentação
suficientes e adequados à faixa etária dos adolescentes atendidos;
IX - oferecer cuidados médicos,
psicológicos, odontológicos e farmacêuticos;
X - propiciar escolarização e
profissionalização;
XI - propiciar atividades culturais,
esportivas e de lazer;
XII - propiciar assistência religiosa
àqueles que desejarem, de acordo com suas crenças;
XIII - proceder a estudo social e pessoal de
cada caso;
XIV - reavaliar periodicamente cada caso,
com intervalo máximo de seis meses, dando ciência dos resultados à autoridade
competente;
XV - informar, periodicamente, o adolescente
internado sobre sua situação processual;
XVI - comunicar às autoridades competentes
todos os casos de adolescentes portadores de moléstias infectocontagiosas;
XVII - fornecer comprovante de depósito dos
pertences dos adolescentes;
XVIII - manter programas destinados ao apoio
e acompanhamento de egressos;
XIX - providenciar os documentos necessários
ao exercício da cidadania àqueles que não os tiverem;
XX - manter arquivo de anotações onde
constem data e circunstâncias do atendimento, nome do adolescente, seus pais ou
responsável, parentes, endereços, sexo, idade, acompanhamento da sua formação,
relação de seus pertences e demais dados que possibilitem sua identificação e a
individualização do atendimento.
Entretanto, não há como deixar de
perceber a omissão do Estado do Paraná quanto ao Art. 124 do Estatuto, em seus
incisos VI e VII, uma vez que se trata da única unidade disponível para as
adolescentes em conflito com a lei em todo o estado e é de se concluir que
estão, muitas delas, distantes da mesma localidade onde residem suas famílias,
bem como que as visitas semanais ficam comprometidas devido à distância.
Art. 124. São direitos do adolescente
privado de liberdade, entre outros, os seguintes:
(...)
VI - permanecer internado na mesma
localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsável;
VII - receber visitas, ao menos,
semanalmente;
(...)
Ao final da visita, após termos assistido a um vídeo com fotografias das internas nas mais diversas situações de socialização e aprendizado, brincando juntas no pátio, a passeio na praia, todas aparentemente muito felizes ao som da música Amigos para Sempre cantada por Sara Brightman e José Carreras, tivemos acesso a apenas duas internas, Carise e Kaene, que agradeceram nossa visita e pediram que não nos esquecêssemos de que as meninas do educandário são meninas normais, como qualquer outra adolescente.
Causou-me uma espécie de pesar,
no entanto, o fato de não podermos ter tido um acesso mais direto e pessoal a
elas, mesmo ciente de que deve haver algum motivo pedagógico para tal; teria
sido mais rico se tivéssemos podido nos assentar com elas e conversar informalmente,
como uma visita que elas de fato estivessem recebendo e não consigo visualizar
os motivos pelos quais esse contato não se deu, ainda mais em se tratando da
visita de uma turma composta quase na sua totalidade por mulheres, como era a
nossa turma de Direito, onde das 26 pessoas presentes, apenas duas eram do sexo
masculino.
Retornando da faculdade outro
dia, pude perceber, na rua, uma moça, jovem, maltrapilha, possuindo poucos
dentes na boca e portando uma garrafa nas mãos. Ela fez um comentário ao léu,
de que estava esperando um determinado ônibus que a levaria de graça até o
centro, pois lá era mais fácil encontrar comida.
Comecei a conversar com ela,
informalmente, e ela me disse que mora na rua, um pouco mais à frente e dorme
sob a marquise de um estabelecimento comercial.
Prosseguiu a jovem, em resposta
as minhas perguntas, dizendo que acorda todos os dias em torno de 9 da manhã e
segue para o centro, onde é mais fácil receber um prato de comida de alguém.
Disse-me, ainda, que passa suas
tardes se ocupando em pedir dinheiro às pessoas para ter o que comer à noite e,
no início da noite retorna ao seu bairro comprando algum alimento na padaria ou
no mercadinho e se acomodando na calçada para dormir novamente sob a marquise e
assim vai passando seus dias.
Perguntei-lhe se não há alguma
casa, algum abrigo ao qual ela possa se dirigir e sua resposta me fez refletir
muito sobre outras questões cruciais: “eu já tenho 22 anos, enquanto eu era
´dimenor` eles me ajudavam, mas agora acabou”.
Concluindo esse relatório de
visita ao Educandário Joana Richa, não pude deixar de recordar da conversa com
essa moça, de 22 anos, ainda tão próxima e já tão distante da adolescência.
As ações desenvolvidas pelo
educandário em atendimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente são, sem
dúvida, efetivas e indispensáveis, porém, analisando toda uma cidade, um estado
e um país, fico me perguntando a respeito da eficácia de tais ações.
E ao perguntar, humildemente não
posso deixar de ouvir a resposta ecoando em meus ouvidos: a eficácia está na
multiplicação preventiva.
Um dia há de chegar em que as
ações pedagógicas e socializadoras da unidade hoje visitada estarão atuando
preventiva e não corretivamente e, neste dia, em que os direitos e garantias
fundamentais estiverem assegurados a todas as crianças e a todos os
adolescentes desse imenso Brasil, então eu colocarei minha cabeça sobre o
travesseiro e me sentirei um pouco mais humana, um pouco mais segura e um pouco
mais feliz.
“Educai as crianças, para que não
seja necessário punir os adultos." (Pitágoras)
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